Carmem Portinho foi a primeira mulher urbanista do Brasil
A corumbaense Carmem Portinho é reconhecida como a primeira urbanista da história do Brasil. Nascida em 26 de janeiro de janeiro de 1903, a história dela é um exemplo de superação. O relato que segue foi extraído do guia Pioneiras da Ciência no Brasil – 2ª Edição, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), agência do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).
Nasceu na cidade de Corumbá (Mato Grosso do Sul), no dia 26 de janeiro de 1903. Veio muito cedo para o Rio de Janeiro. Participou ativamente do movimento feminista, lutando desde 1919 junto de Bertha Lutz e outras mulheres pelo direito ao voto. Foi uma das fundadoras da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e também sua vice-presidente.
Esteve à frente das lutas femininas pela conquista da cidadania nas décadas de 1920 e 1930, batalhadora incansável pela igualdade entre mulheres e homens. Carmem foi a terceira mulher a se graduar em Engenharia Civil pela Escola Politécnica da antiga Universidade do Brasil, no ano de 1925.
Foi também uma ativista pela educação e pelo reconhecimento do trabalho feminino fora de casa. Assim, em 1929, Carmem, junto com outras mulheres universitárias, fundaram a União Universitária Feminina, entidade dedicada a incentivar as mulheres no mundo do trabalho. Fez uma brilhante carreira profissional. Ao colar grau em abril de 1926, Carmem foi nomeada engenheira-auxiliar pelo então prefeito do Distrito Federal Alaor Prata, paraninfo da turma.
A nomeação foi provavelmente motivada, segundo o seu depoimento, por ser a única mulher na turma. Dessa forma, Carmem ingressou no quadro de engenheiros da Diretoria de Obras e Viação da Prefeitura da Capital Federal. Desde 1925, ainda no último ano do curso de engenharia, Carmem começou a dar aulas no Colégio Pedro II. Contudo, o fato de uma mulher ministrar aulas num internato masculino foi um escândalo.
O próprio ministro da Justiça quis interferir na nomeação dela para o colégio, mas não conseguiu tirá-la da cátedra. Assim sendo, Carmem permaneceu lecionando por mais três anos, até decidir pedir demissão. Como a Diretoria de Viação e Obras da prefeitura era ocupada por um velho engenheiro, que não confiava muito na competência feminina, a primeira tarefa que ele a incumbiu foi a de vistoriar um pára-raios instalado no alto do antigo edifício da prefeitura. Para realizar essa tarefa, Carmem teria que subir no telhado do prédio, uma dificuldade que o velho chefe achava que ela, por ser mulher, não conseguiria superar.
Por sorte, a jovem engenheira tinha treinamento em alpinismo, pois quando ainda era estudante pertenceu ao Centro Excursionista Brasileiro e havia escalado todos os morros cariocas. Nas palavras de Carmem Portinho: - Subir em um telhado era sopa! Muito mais difícil, segundo ela, era saber como funcionava o pára-raios, uma vez que sua especialidade era a engenharia civil. Suas desventuras com esse primeiro chefe não pararam por aí. Desconfiada de que não seria promovida por mérito, devido ao fato de ser mulher e pelo fato de que, à época, as promoções por merecimento dependiam de “pistolão”, ainda que ela fosse uma funcionária competente e dedicada ao trabalho, Carmem arquitetou um plano para obter a sua merecida promoção. Naquela época, o Presidente da República Washington Luiz, dava toda segunda-feira uma audiência pública: ele ficava lá no gabinete horas em pé ouvindo queixas e pedidos. Então, eu peguei aquela fila imensa e, quando chegou a minha vez, contei o caso:
“Sou engenheira, trabalho na prefeitura, dou conta do meu dever e trabalho muito. Podem consultar os meus chefes. Agora vai haver promoção e me considero com merecimento para recebê-la. Só que não conheço ninguém para me apresentar. Vim pedir ao senhor que saiba da minha vida, do meu trabalho e me ajude, caso julgue que mereça.” Washington Luiz respondeu: “Pois não!”, e disse para o comandante Braz Velloso, que o acompanhava nas audiências: “Tome nota e providencie isso!”
Carmem foi promovida a engenheira de segunda classe e quando foi receber a promoção, seu chefe lhe disse: - A senhora pode estar certa que não dei um passo para sua promoção. Como desde o início de sua carreira foi trabalhar num canteiro de obras, sua primeira construção foi a Escola Ricardo de Albuquerque, no subúrbio do mesmo nome e que ainda hoje existe. Casou-se no início dos anos 1930 com médico Gualter Adolpho Lutz (1903-1969), irmão de Bertha Lutz, do qual se separou poucos anos depois.
Ainda nesta década, fez o primeiro curso de urbanismo do país. Poucos anos depois, candidatou-se a uma bolsa do Conselho Britânico para estagiar junto às comissões de reconstrução e remodelação das cidades inglesas destruídas pela guerra, como uma forma de complementar seu curso de urbanismo. Aprovada a bolsa, Carmem seguiu para a Inglaterra, onde chegou ainda com a guerra em curso.
Foi uma experiência importante, como ela relatou mais tarde, pois pode sentir o problema da falta de moradia e acompanhar de perto as propostas e o esforço para a solução do problema. Voltando da Inglaterra, Carmem fez uma proposta ao prefeito do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, de criação de um Departamento de Habitação Popular. Dessa maneira, tornou-se uma das responsáveis pela introdução do conceito de habitação popular no Brasil, uma vez que, evidentemente, as desigualdades sociais brasileiras faziam com que a moradia também fosse um problema grave na própria Capital Federal.
O prefeito do Distrito Federal aceitou a proposta e acabou nomeando-a diretora do novo departamento. Assumindo o departamento, Carmem propôs e construiu, na década de 1950 o conjunto residencial ‘Pedregulho’, no bairro de São Cristóvão. O projeto arquitetônico de 'Pedregulho' coube a Afonso Eduardo Reidy, seu marido, na ocasião e membro integrante do mesmo Departamento de Habitação Popular da prefeitura.
Também foi de autoria de Afonso Reidy o projeto arquitetônico do conjunto da Gávea, onde, novamente, Carmem foi à engenheira responsável pela obra. A construção dos conjuntos habitacionais projetou-a no Brasil e no exterior como engenheira de renome, mas o conjunto de 'Pedregulho' ela não chegou a acompanhar a construção até o fim, pois, com a ascensão do jornalista Carlos Lacerda ao governo da Guanabara em 1962, Carmem acabou pedindo aposentadoria e saiu do serviço público.
Suas divergências políticas com Lacerda eram irreconciliáveis. Não obstante deixar a carreira pública, permaneceu em plena atividade profissional, trabalhando desta vez para a iniciativa privada. Assumiu a construção do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que também fora projetado por Reidy. Em meados da década de 1960, a convite do governador da Guanabara, Francisco Negrão de Lima, criou a Escola Superior de Desenho Industrial, uma experiência pioneira para a época. Naqueles anos, mesmo no exterior, havia poucas escolas de desenho industrial, das quais, a mais famosa era a Bauhaus, na Alemanha.
Coube, assim, a Carmem dirigir, por vinte anos a Escola de Desenho Industrial, depois incorporada a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O movimento feminista, como homenagem a sua luta em prol das mulheres brasileiras, por meio do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) convidou-a, entre outras mulheres, em 1987 para entregar ao presidente da Câmara Federal deputado Ulisses Guimarães, a Carta das Mulheres aos Constituintes com as reivindicações das mulheres à nova Constituição.
Carmem teve dois casamentos: o primeiro com o irmão de Bertha Lutz, o médico Gualter Adolpho Lutz (1903-1969) e outro com o arquiteto Afonso Eduardo Reidy (1909-1964). Faleceu no Rio de Janeiro em 25 de junho de 2001.
Fonte: Entrevista concedida a Vera Rita da Costa para a revista Ciência Hoje, publicada em novembro de 1995. Extraída do livro Cientistas do Brasil - depoimentos, Sociedade Brasileira para o Progresso Brasileiro - SBPC, São Paulo, 1998. Carmem Portinho,verbete do Dicionário Histórico Biográfico pós 1930, 2º Ed., Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2001.
Autoria: Hildete Pereira de Melo é Doutora em Economia, Professora Associada da Universidade Federal Fluminense, editora da revista Gênero, pesquisadora da área de Relações de Gênero, História da Ciência, Feminismos, Economia Brasileira.
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