Afroqueer é uma artista e pesquisadora que atua no cenário de Campo Grande, e compartilha sua vivência como pessoa negra e LGBTQIA+

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Artes | Ayanne Gladstone/Da redação | 29/06/2021 12h11

Artista trans não-binária fala sobre seu processo artístico em MS

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Para explicar a 'não-binariedade' enquanto expressão de gênero, é preciso recapitular o significado dos conceitos de 'cisgeneridade' e 'transgeneridade'. Cisgênero é a pessoa que se identifica com o gênero ao qual lhe foi atribuído de acordo com o órgão sexual, ou seja, com o gênero biológico. A pessoa transgênero não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento. Pessoas não-binárias transitam entre o gênero masculino e feminino ao mesmo tempo, como também podem não se identificar com nenhum deles.

“Em vez disso, elas [pessoas não-binárias] entendem o gênero de forma que ultrapassa a mera identificação como homem ou mulher”, é o que descreve a LGBT Foundation, instituição de caridade enraizada nas comunidades de Manchester (Inglaterra) que realiza serviços de apoio à comunidade LGBTQIA+.

A artista cênica mineira de 21 anos, Emi Mateus, comumente conhecida em seu cenário artístico como Afroqueer (junção entre afrodescente e a palavra queer, conceito abraçado pela comunidade LGBTQIA+ para designar uma pessoa que não se identifica com os conceitos de heteronormatividade e cisgeneridade), dá um exemplo prático sobre a não-binariedade como expressão de gênero: ela prefere ser chamada pelo pronome feminino ou neutro.

A linguagem neutra, que já possui um guia, ganhou popularidade entre as redes sociais e, segundo especialistas da Universidade de São Paulo (USP), tem o objetivo de tornar a língua portuguesa inclusiva a pessoas que não se sentem representadas pelo uso do pronome masculino genérico. Garante integração a não-binários, trans, travestis, intersexo, gênero fluído ou pessoas que não se sintam representadas pela binariedade. Embora a linguagem neutra pareça incomodar líderes políticos, como no caso de Santa Catarina (SC), onde foi proibida nas escolas públicas e privadas, ela não é considerada uma norma, mas uma reflexão sobre a representatividade de grupos invisibilizados pela sociedade.

Em entrevista ao Ensaio Geral, Afroqueer relata sua conexão com as artes e seu encontro com a expressão de gênero.

Identidades

Acadêmica de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Emi Mateus também trabalha com performance, escrita criativa e pesquisa acadêmica. Ela esclarece que foi logo após cursar o ensino médio, fase em que sofreu bullying, onde começou a questionar o que desejava para a construção de sua própria vida. Emi comenta que seu processo de identidade está atrelado a inserção na faculdade, meio social onde teve contato com novas pessoas, teorias e com o autoconhecimento, além da própria terapia. “A terapia foi muito importante para eu me ver. Era um espelho. Eu falava coisas que eu precisava ouvir. A gente tem que ter esse momento. A sociedade vem sendo violenta. A questão da minha cor, do meu cabelo, da minha identidade, da minha orientação sexual. Nós vamos entrando nessa egrégora de ir achando que não temos valor, e a terapia mostra que a gente pode ter o nosso valor sim e entender o quanto isso é potente depois que a gente se empodera”.

Afroqueer explica que vêm respondendo às questões dos tempos atuais com sua expressão artística. Argumenta com seu próprio corpo e com a arte, a violência racial e sexual, e frisa a importância de, além de se sentir representada, também poder representar outras pessoas. Para Emi, questões como o próprio racismo e a LGBTfobia devem ser discutidas para que outras pessoas também tenham coragem de se expressar. “Eu poderia muito bem responder com violência, responder na mesma medida, mas eu uso a arte para responder essa violência, para me entender, como um processo de cura onde eu sou a paciente e a médica”.

Ao invés do termo drag queen, Emi utiliza a expressão drag queer em sua arte de se travestir. Ela entende que desenvolve através do conceito queer a liberdade para trazer um caracterização excêntrica e fora do senso comum e que não envolva a binariedade do ser masculino ou feminino. A artista se apoia em pesquisas e no conceito de sair da bolha para dialogar com mais pessoas, e afirma que sua inspiração está em suas irmãs e nas travestis. “Eu penso que se essas travestis não tivessem questionado, o que seria da gente hoje? Elas questionaram a identidade delas, elas pensaram ‘e se fosse um pouquinho diferente?’. E se eu colocasse um batom em outro lugar, se o batom também fosse para mim? Não é o que a arte drag é, mas o que eu quero que a arte drag seja. Eu estou ocupando esse espaço, é o que eu crio também”.

 

Foto: Arquivo/Instagram

De acordo com Emi, a importância de se dialogar com mais pessoas torna as problemáticas mais democráticas, o que intensifica o debate e instiga o ponto de mudança correto para que se diminua a violência com as minorias. Segundo a artista, o Brasil ainda é um país colonizado e as minorias sofrem com essa colonização, então ela troca a questão de ‘o que é arte’ para ‘para quem é a arte’. “Eu também trouxe a arte preta contemporânea. A gente cria a partir das nossas vivências, a gente cria e faz fricção entre a vida e o algo que a gente quer que aconteça. Eu trouxe isso de não me ver representada, de não ver as minhas [pessoas da comunidade] representadas. Eu fui criando as minhas estratégias para falar, poetizar, dançar”.

A artista também mergulha na arte da performance e sua estratégia é a de causar provocações, para que os espectadores pensem com ela em suas performances teatrais, que servem para potencializar seu processo artístico, social e cultural. Ressalta que deseja que as pessoas chorem e riam com ela, e não dela. “Nós, pessoas trans, o quanto nós não temos que atuar para caber em determinados lugares senão a gente é expulsa. É um jogo que eu venho criando artisticamente com as minhas dificuldades, mas que elas não me parem, mas me joguem lá pra cima”.

Morte e vida

Emi descreve como morte e vida o ato de sobreviver no Brasil. A taxa de homicídios de pessoas negras cresceu 11,5% de 2008 a 2018, enquanto a de não negras caiu 12%, de acordo com o Atlas da Violência 2020 (pág. 47). A situação não é diferente no ranking de países que mais matam pessoas trans. Em 2020, foram 175 travestis e mulheres transexuais assassinadas, o que representa uma alta de 41% em relação a 2019, com 124 homicídios registrados, de acordo com o dossiê elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).

A artista explica que, no país onde mais se mata transsexuais e travestis no mundo, o processo de se matar e renascer metaforicamente foi utilizado para que se desfizesse dos preconceitos que ela tinha com a própria imagem. Emi esclarece que esse processo não a torna menos ou mais do que alguém, pelo contrário, a torna única e capaz de compreender a potencialidade do próprio corpo. “A gente tende a fortalecer uma ideia de que os nossos corpos são dignos de amor, carinho, afeto, de família. [...] A gente tem que assumir esses lugares de falar, de estar numa TV, de estar numa série, de estar em vários espaços que não na rua, que não na marginalização”.

Como escritora criativa, a artista relata o episódio de LGBTfobia que sofreu numa praia, quando foi confrontada por estar de biquíni e sem esconder a marcação de seu órgão genital. Emi foi insultada e agredida, mas não replicou. “Vou colocar num papel e vou escrever uma poesia sobre isso, e a resposta para eles foi essa poesia”. Para ouvir um dos poemas de Afroqueer, veja a entrevista completa pelo Instagram do Ensaio Geral.

Afroqueer confronta o mundo constantemente ao renascer em diversas identidades. Dentro de sua conexão com a não-binariedade, também está seu vínculo com a negritude, a performance drag queen, as pesquisas universitárias, o teatro, a literatura e a arte de ser a própria voz para as minorias que ainda são caladas. No mês do Orgulho LGBTQIA+ é necessário questionar e confrontar a violência e a falta de políticas públicas, e frisar o quanto os corpos da comunidade também são feitos de carne, osso e alma. Dignos de espaço, respeito e amor.

Assista ao novo projeto do coletivo do qual Afroqueer faz parte. Em homenagem ao mês do orgulho, o Projeto Afeto publicou seu primeiro trabalho hoje (28), que surge para instigar a reflexão e conscientização sobre o afeto dentro da própria comunidade LGBTQIA+.

 

Foto: Divulgação/Projeto Afeto

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