Personalidade | Júlia de Freitas | 19/11/2014 23h18

Casa de Ensaio: uma casa de sonhos de MS

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Casa de Ensaio: uma casa de sonhos

Campo Grande (MS) - A valorização da arte na infância como agente de transformação social é a principal ideia que rege as atividades da Casa de Ensaio, projeto que nasceu em 1996 pelas mãos de Laís Doria e Arthur Monteiro de Barros e vem transformando e encantando a cidade de Campo Grande ao longo dos anos. Com aulas de teatro, dança, música e artes visuais, a Casa trabalha com uma metodologia que tem como prioridade a educação integral. Não uma educação com o objetivo central de formar grandes atores e artistas comerciais, mas sim de usar a arte e a brincadeira como meios eficazes de aprimorar o desenvolvimento dos talentos, da cidadania,da integração da criança com próximo e outras características determinantes para uma vida em sociedade harmoniosa. A busca por um mundo melhor através de ações práticas cotidianas é o que, junto com a decoração colorida do espaço, chama mais atenção em uma visita ao lugar.


Eduardo Alcântara, 24 anos, é acadêmico de Artes Visuais e ex aluno da Casa de Ensaio. Entrou no projeto com 11 anos e anos depois, continua nele, agora como Coordenador de Registro e Memória e professor de Jogos Tradicionais, além de participar da produção dos eventos. Eduardo comenta o ínicio do projeto. "Há 16 anos atrás, os fundadores começaram a trabalhar com crianças de rua e viram que dava bons resultados de transformação nas crianças, acabaram por se interessar cada vez mais pelo teatro social". Após anos de mudanças entre aluguéis, em 2012 o grupo conquistou sede própria e com o tempo passaram a conquistar parcerias que são fundamentais para que o projeto crescesse. Eduardo ressalta a importância do projeto-âncora da Casa de Ensaio, o "Brincaturas e Teatrices", que trabalha com crianças de 8 até 12 anos selecionados por uma bolsa que avalia condição social baixa como prioridade. "A gente dá preferência para o público mais necessitado mas ainda assim, não excluímos crianças de escolas particulares, por exemplo. Temos uma porcentagem para estas mas a preferência são crianças de escolas públicas que muitas vezes não tem dinheiro para pagar um curso de alguma área das Artes", explica. O projeto "Abrindo Portas" oferece oficinas pagantes para pessoas que tem melhores condições sociais. A verba vai para os professores e para a instituição.


Na questão financeira, o coordenador explica que o espaço não tem ligação com entidades governamentais. Os "Amigos da Casa" são compostos por empresas privadas e pessoas que oferecem serviços à instituição. A Plaenge e a Vanguard mensalmente dão manutenção para o espaço, por exemplo. Aliado à esses serviços, o grupo realiza bazares e brechós como formas alternativas de arrecadação de verba para o projeto. "A gente precisa buscar alternativas. Nos editais do governo a gente sempre se inscreve mas nunca é uma coisa garantida. Há muita concorrência e o Centro-Oeste aprova poucos trabalhos nesta área", ressalta. 


A luta pela manutenção é constante mas não desanima os coordenadores, que sentem a importância social do trabalho que Casa de Ensaio realiza com as crianças. "O nosso teatro se baseia na arte do coletivo, todas as crianças são especiais, tem seus talentos e todas são as estrelas, não há protagonismo. Trabalhar no coletivo gera influências positivas em cima da vida inteira da crianças. Elas podem sair daqui e seguirem profissão como bailarinos, atores ou músicos e isso é ótimo, mas o intuito principal das oficinas e aulas é desenvolver o diferencial de pensar sempre no próximo, trabalhar com o coletivo, que acaba fazendo diminuir a violência na escola, na família e na sociedade inteira", diz. 130 crianças anualmente que conseguem esta oportunidade de ouro acabam por resgatas valores básicos, aprendendo através das brincadeiras e das artes. É uma via de mão-dupla: as crianças gostam e ao mesmo tempo desenvolvem elementos transformadores nelas mesmas.


Com oficinas que resultam em belos espetáculos onde há dança, interpretação e música, o grupo também se reúne periodicamente para visitar museus, assistir filmes e peças em cartaz em Campo Grande. São os passeios culturais que tem como o intuito expandir os horizontes das crianças. A ideia é também fazer as crianças sairem da zona de conforto com obras de arte que estimulam o desenvolvimento do pensamento crítico. Os filmes, por exemplo, são sempre legendados e sempre de teor culturalmente elevado, não simples obras de entretenimento. Isso, sem dúvidas, acaba refletindo no futuro-adulto, que vai ter base sólida para definir seus posicionamentos. "É totalmente transformador. Você pode ter certeza que uma criança que fica aqui um ano ou cinco anos, alguma coisa a gente consegue trabalhar e transformar em algo muito melhor", diz Eduardo.


João Pedro tem 12 anos e frequenta a Casa de Ensaio três vezes por semana. "Eu gosto daqui, aqui eu faço muitas coisas que me mudou", comenta. Questionado sobre sua "parte" preferida, João responde sem dúvidas. "Nas aulas da Carol a gente pode se soltar, a gente pode falar o que a gente quer que ela sempre vai nos ajudar". Já entre as artes, João se mostra empolgado com a dança. "Sempre gostei mais da dança, sempre fui mais chegado", enfatiza. A animação e enturmamento de João com outras crianças na casa é notável ao abrir a porta. Com bom desenvolvimento na comunicação, as crianças mostram desprendimento e o clima dentro da casa é de festa mesmo em dias chuvosos e, aparentemente, sem nada de importante. Com decoração"à brasileira", a Casa respira arte por todos os lados- mural de fotografias, pinturas e esculturas enfeitam o espaço sempre com uma característica em comum: muita cor. A biblioteca é o espaço mais fascinante da Casa e quem entra sente a magia dos livros em um espaço aconchegante que convida todos, adultos e crianças, a entrarem sem medo no universo mágico da literatura.


Carolina Dória, coordenadora artística e filha da co-fundadora do projeto, resolveu sair do Rio de Janeiro e vir para Campo Grande trabalhar na Casa de Ensaio há três anos, sem arrependimentos. Carol também dá aula de Jogos Teatrais e dirige os espetáculos. "A gente trabalha com a educação integral sobre o viés artístico. Através do teatro, das artes visuais, música, do audiovisual, entre outras coisas, se sensibiliza as crianças para que elas reconheçam o mundo à sua volta, desenvolvam autonomia para buscar, descobrir e conhecer quem você é", comenta. Em uma referência desmistificadora, Carol comenta sobre os gostos de cada um. O funk e o sertanejo universitário, gêneros populares, tem seu sentido e seu valor dentro do cenário brasileiro. O grupo busca desenvolver esse gosto, conhecendo os "porquês" de determinados temas em letras e buscando aprimorar aquele estilo musical e não descartá-lo. "A história do funk é muito interessante, vem de uma manifestação genuína da comunidade, é uma expressão artística", exemplifica.

A cultura brasileira é um dos pontos muito bem valorizados pelo projeto, que busca conhecer e estudar ícones da arte brasileira, sem descartar culturas estrangeiras. "Pra gente conhecer os outros precisamos nos conhecer. A gente é Brasil, a gente é América Latina, a gente fala português, a gente não é norte-americano e olha o tanto de coisa legal que tem em nosso país", enfatiza. Nelson Rodrigues bem explicou com seu termo "Síndrome do Vira-Lata" como nós podemos subestimar os frutos de nossa própria terra, do Brasil e até localmente. Campo Grande, por exemplo, sentiu a perda recente do grande poeta Manoel de Barros, e mesmo com outros destaques da região, muitas vezes temos a insistente mania de reproduzir o pensamento de que na nossa região há pouca arte de alta qualidade, que julgamos se restringir ao eixo Rio-São Paulo. 


Brincadeira, para o grupo da Casa de Ensaio, é tudo menos "perda de tempo"- como muitos podem julgar ser. Como diria Lino de Macedo, brincar é mais que aprender, é uma experiência essencial, um modo de decidir como percorrer a própria vida com responsabilidade. Após uma visita à Casa de Ensaio, impossível não se deparar com uma reflexão: talvez muito do estresse causado pelo padrão de sociedade em que estamos inseridos, que prioriza o "fazer muito em pouco tempo", seria possivelmente amenizado com brincadeiras e com a arte libertadora. Descontração e humor são as palavras-chave para entender o sentido maior que há em atividades e jogos que fazemos na infância e muitas vezes esquecemos de seu valor à nossa vida cotidiana. O mínimo que podemos fazer é proporcionar cada vez mais essas atividades às gerações seguintes. A Casa de Ensaio é um projeto que deixa legado, um legado de uma ação, entre tantas outras, que visa um único objetivo: um mundo melhor.

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